terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Até o fim

 

Até o fim

Os passos largos tocavam forte a calçada, caminho mais que conhecido, aliás, por mais de trinta anos foi o trajeto de ida e volta para a repartição no Ministério da Fazenda, trabalho digno de um concursado hoje aposentado e só numa casa de vários aposentos que no passado corriam quatros filhos dois homens e duas meninas. Que agora só apareciam de vez em quando e Selma a secretária e também enfermeira ligava a todos dando notícias, um ou outro ligava direto no celular para conversar rápido os filhos mais velhos moravam em Londres, o casal caçula morava um em São Paulo e o outro em Curitiba.

Durante sua vida acumulou algumas manias e uma delas era não trocar sapatos e sim restaurá-los trocando a sola e assim aumentando a durabilidade e o conforto para os pés. A companheira de uma vida partira há doze anos, a doença do mal a levara como ele dizia e foram sete meses de sofrimento. Nos seus dezoito anos era linda e a família não o via com bons olhos, estudante e para se sustentar passava de trabalho em trabalho insignificantes, mas no fundo seu objetivo era passar num concurso público para o Ministério da Fazenda, mas para fazer cursinho a noite tinha que ter um trabalho qualquer e a família dela não queria esperar, comigo ela perdia tempo. Exatamente cinco meses após o resultado da classificação foi convocado para comparecer ao ministério, enfim iria assumir seu posto e onze meses entrava na igreja e realiza seu segundo sonho.

A enfermeira Selma, era mais que uma acompanhante e secretária, ela controlava os horários dos remédios, mas seu Alonso toda a tarde ia à praça do bairro jogar dominó com os amigos só uma dor o derrubava era a velha coluna, havia dias de crise que não saia da cama, então eram relaxantes e até injeção, a muito abolira o sal e o açúcar do seu paladar, as vezes dava uma escapada e almoçava no restaurante da esquina uma grande lasanha e vinho português. 

Décadas atrás havia sido amigo de JK a foto ficava na estante da sala como um troféu, frequentou festas no Palácio Guanabara com Elisa que sempre linda e simpática o deixava orgulhoso, por ela o marido seria político, mas não tinha o talento necessário, o seu coração era grande de bondade com todos e era feliz porque tinha a mulher ideal.

 Mas quando ela sentiu aquela dor forte no peito num domingo de junho, levada as pressas pelos filhos ao hospital à notícia foi a pior, coração de Elisa estava fraco e durante sete meses correram os melhores cardiologistas do Rio e São Paulo, ela recebera todo o amor dos filhos e dele que estava ao lado dela na hora da partida e naquele momento morria também a sua alegria.

A idade já pesava sobre os ombros e pernas sentia fraqueza ou tontura, nos últimos anos passara jogando dominó na praça do bairro, duas semanas atrás o pessoal foi convidado a jogar na sua garagem o carro tinha sido vendido a mais de três anos, o médico e os filhos o proibiram de dirigir, já não se animava andar até a praça. Uma semana antes passara dois dias na clínica, por causa das tonteiras que vem e vai agora o médico pediu vários exames e disse que tudo vai melhorar, não recebi nem um telefonema e Selma só apareceu no segundo dia, o pessoal sim estes vieram me visitar e o Maneco dormiu aqui e jogamos cartas até tarde só paramos quando a enfermeira chefe nos tomou o baralho, quando chegou a alta o neto do João da Márcia veio me buscar, sempre gostei daquele rapaz desde menino ele era sempre gentil com os mais velhos.

Um dos meus talentos sempre foi minha memória, eu nunca esquecia o aniversário de alguém da família e amigos próximos, no trabalho eu sabia cada processo pelo número e nome do requisitante, ultimamente sinto que esqueço as coisas às vezes tenho quatro filhos outras três e o nome deles, ando confundindo se não fossem as fotos, eu teria esquecido Elisa, tem dias que a chamo pedindo água e Selma me corrige é Selma é Selma.

Ontem me lembrei de que a última rodada de dominó não foi há quatro dias e sim dois meses, estou tendo brancos que duram não sei quanto tempo, dizem que minha filha mais velha passou uma semana aqui com meu neto, infelizmente não me lembro do Maneco, mas do João da Márcia sim todos os dias passa aqui, lemos o jornal juntos, mas não há notícias de JK agora... 

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Minicontos

Estes dois minicontos fazem parte do meu livro (121 Instantes), um livro de minicontos, este livro foi escrito no período que passei em Curitiba - 2019.


Desnuda

Todo dia ele enviava um pequeno poema de bom dia para uma linda mulher e nunca havia recebido uma resposta de agradecimento. E por meses continuou a enviar os pequenos poemas e nunca recebia resposta. Então, certa manhã não enviou, na manhã seguinte também não e nem nas outras. Após uma semana recebeu uma mensagem de bom dia que dizia: - sinto falta dos meus poemas, atualmente nem tenho me desnudado sobre minha cama para lê-los, já não tenho fome nem prazer para começar meu dia e sinto uma grande tristeza pela falta do seu amor.


Desavença

Foi uma desavença há mais de dez anos. Uma discussão entre dois grandes amigos devido a um pequeno acidente de carro.  Naquele dia acabou a amizade entre os dois que já beiravam os 60 anos. Cada um ficou com seu prejuízo, as famílias não levaram a sério o caso, mas uma década se passou e um veio a falecer. No cemitério no momento da oração de despedida, no salão entrou o antigo amigo, todos fizeram silêncio ao vê-lo e ele foi direto ao caixão tirou um envelope de seu bolso e colocou no bolso do defunto e disse alto para que todos ouvissem: - estou pagando o seu prejuízo, visto que a culpa daquele acidente foi minha, para quando você chegar ao céu não fale mal de mim e me prejudique quando chegar a minha vez. Saiu com o peito cheio e nem olhou para os lados. 


quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Escrevinhando

Escrevo aqui, escrevo ali

Nunca paro de escrever,

Escrevo só, acompanhado

Escrevo com ou sem você.
Se está distante escrevo u
ma carta

Se está pertinho, um bilhetinho
Tá demorando, um memorando
Se tu não vens. Ps: tá tudo bem.
Escrevo à lápis, canetinha
Ponta dupla ou quatro cores
Lapiseira e giz de cera
Não precisa apontadores.
Na calçada eu uso giz
Na parede uso carvão
Da telha com o caco eu fiz
Um imenso coração.

 

 

José Bernardino – Ceará, letrado pela Universidade Internacional da Lusofonia Afro-brasileira no Ceará. Seu primeiro texto publicado foi o conto A casa da vovó no livro "O que contam os sentidos", o qual retrata um de seus principais refúgios na infância. Recebeu menção Honrosa no Prêmio Cidadão de Poesia 2019 e, foi selecionado no concurso nacional jovens poetas, poetize 2019, com a poesia "O aporrinho da morte". É poeta, cineasta, amante da arte.


terça-feira, 14 de setembro de 2021

O mar de Angra dos Reis

 Este poema faz parte do livreto - (Poemas para a minha terra) 


 

O carro desponta no último túnel

Da escuridão das cavernas

Da umidade em gotas, das suas pedras escuras

E surge a claridade do sol

Que nos comprime a retina

Com raios coloridos

Que transpassam pelas frestas

Das copas imponentes das árvores

Neste momento no horizonte surge

O mar de Angra dos Reis, já se pode mirar

Uma de suas ilhas

Das centenas que povoam sua baía

Aqui de cima se vê o espelho

Da superfície verde de suas águas

E que se confunde com os olhos

Da garota que a pouco partiu.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Nascente

 


 

A moça desperta aos poucos

Seus olhos semiabertos

Demoram em se acostumar

Com a luz do sol que entra pela janela

Desvia o olhar e cobre a cabeça

Com o cobertor de lã fina

Sorri e procura com a mão

O corpo que estava ao seu lado

E já não está, ouve um ruído

Com as pernas joga o cobertor para o lado

Deixam a mostra suas ancas nuas

Tem uma música que vem de fora

São os pardais que brincam na cumeeira

É cheiro de ovo, queijo derretido, café

O corpo ainda pede descanso

Foi uma noite e tanto de amor...


segunda-feira, 26 de julho de 2021

Tornar

 

Tornar 

 

Intenso

É o momento

Que se faz presente

O que passou

Está ali, está aqui

Está na retina

Na palma da mão

No degrau da escada

Intenso

É refazer o caminho

Tornar

Do olhar trocado

Mais que voar

Voar para lá, voar para cá

Voar de mãos dadas

Voar no sorriso da foto.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Os frutos e a intolerância - Um dos Contos Curtos vencedor do I Concurso do Sebo do Edy - 2021

Flávia Gonçalves Medeiros – Engenheira Agrônoma formada pela Universidade Federal de Lavras- MG; Licenciada em Letras (Português/Literaturas) pela Universidade Federal Fluminense - RJ; servidora pública aposentada; escolheu a cidade de Quatis – RJ para viver, onde desfruta da companhia das plantas, dos bichos e dos livros.

 

Os Frutos e a Intolerância

 

Não me recordo quando minha semente perdeu a dormência e minha radícula tocou a terra, só sei que fui plantada aqui, no fundo deste terreno, muito longe de minhas antigas origens indianas. Desde pequena sabia que minha vocação era abraçar o céu e para ele dirigia meu ápice a cada alvorecer, a cada vesperal brilhante e a cada anil estrelado. Mesmo que houvesse nuvens, ventanias e aguaceiros, esplendoroso era o meu crescer, no cotidiano abrir e fechar de estômatos.

Finquei forte as raízes e fui me espichando para os lados com determinação. Minhas gemas túrgidas tinham pressa em lançar novos brotos, verdejando minha aura. Sob a minha copa ainda rala, o capim cor-de-rosa começava a esbanjar suas sementes para alimentar aqueles passarinhos que voam em cachos, fazendo algazarra desde cedo e enchendo o mato de alegria no miolo da cidade.

Em pouco tempo, meus galhos já sustentavam os pequenos ninhos de colibris. Depois, mais grossos, foi a vez das saíras, sanhaços, cambaxirras, rolinhas e canários. Ao final daquela temporada, ganhei altitude e altivez. Em meus vigorosos ramos sobrechegaram os primeiros botões florais que, nas chuvas da primavera, se abriram em cachinhos de delicadas pétalas brancas. Mirtos singelos que, tocados pelo vento, bailavam perfumados e roçavam a alma dos passantes alados. Atraídas pelas flores, vieram chegando as irapuás, as iruçus, as iraís, as mandaçaias e as jataís que, em revoadas alternadas, iam zumbindo e esparramando cristais de pólen pelo ar e, assim, acendiam meu verde naquela festa dourada.

Logo, despontaram os frutos dum intenso vermelho arroxeado, carregados de tanino, apetitoso elixir curativo que muitos desconhecem, menos os maracanãs e os sabiás a povoarem meu derredor, dando-me a missão por cumprida: jamelão, jambolão, baguaçu, manjelão, azeitona- roxa, guapê, baga de freira. Ocupada com a faina dos gulosos e distraída pelo frenesi daquele nicho enfrutecido, nem de longe suspeitei da fúria que crescia pra lá do muro que delimitava o terreno pelos fundos. É que, com os sopros temporais batendo em minha maturidade, ocorria o inevitável: muitos frutos acabavam parando do outro lado, forrando o chão dum singular tapete bordô. Justamente ali, naquele quintal onde havia alguém sempre a nutrir uma aversão pelas plantas!

Só fui atinar que havia algum descontentamento quando percebi que a vizinha trovejava a meu respeito. Mas, o que uma imóvel criatura como eu poderia fazer? Uma árvore só sabe ser. Fotossínteser-se! Carregada de sussurros farfalhados em dueto pela brisa na folhagem, cantilenas e aromas silvestres, em vão, tentei me desculpar.

Intolerante, a mulher não suportava ver seu espaço “sujo” pelas bagas e, como não tinha força nos braços para me derrubar com um machado, achou de comprar um poderoso veneno. Diluiu-o num balde d’água, abriu o portão lateral que dava para a rua, deu a volta por detrás do muro adentrando o terreno e, sem dó, derramou o líquido corrosivo no entorno de minhas raízes. O ataque foi feito às claras, sem nenhum constrangimento. Ela nunca se preocupou em esconder seu ato hediondo enquanto aspergia a poção com a ajuda de um caneco.

- Bem-te-vi! Bem-te-vi-te-vi-te-vi! Gritou a ave alardeando a malvadeza.

O caldo venenoso jogado na terra percolou, atingindo minhas raízes. Senti um ardor seguido de pontadas na coifa, que derreteu. Devagar a necrose alcançou meus veios mais profundos. A seiva endurecida e queimada não tinha mais serventia e uma asfixia se instalou. Minhas folhas foram caindo uma a uma, após murcharem. Meus galhos, antes fortes, foram adquirindo um aspecto ressequido.

Meu esqueleto ficou ali pousado, debulhando a dor num grito silencioso, a fazer contraponto aos pios agourentos das corujas. Virei um memorial enegrecido e fantasmagórico, assombrando a paisagem urbana neste mundo de expiação.

Mas, antes desse derradeiro devir, um aroma alcoólico e frutado ascendeu por entre meus sacaís, inundando-me de esperançosa paz: é que as frutinhas que caíram para o lado de cá, diferentes daquelas que foram varridas acolá, descansavam junto à terra, onde puseram-se a fermentar. Depois, eu já antevia, deitariam suas sementes e recomeçariam o pródigo ciclo da vida.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Minha escrita

 

É demais o que tenho

Um bloco de folhas

E uma caneta ao lado

Meus velhos óculos

A máquina de escrever

Está encostada ao lado

A mão que desenha o pensamento

Não é humilde nem singela

Tenta redigir fielmente a palavra

A letra do meu alfabeto

As vezes em verbo chora

Por razoes inexistentes

Mas é cheia de amor

Mesmo escrita no silencio

Fala aos corações

 

sábado, 15 de maio de 2021

Sua majestade o catador - um dos vencedores do I concurso de poesia - Sebo do Edy - 2020.

 

Sua majestade o catador

 

A natureza toda agradece                                        

A grandeza da sua nobre missão                         

Há dignidade em vosso trabalho                            

E nele reside uma grande razão                                                     

Você tira o sofrimento                                      

Da mata, da fonte e do rio

Trabalhando debaixo de sol

Ou labutando no intenso do frio.

O mar te agradece

Também o faz o oceano

És um homem abençoado

Aqui na Terra ou em qualquer plano

Jamais se sinta pequeno

Pois és um bravo guerreiro

No palco do seu pensamento

Sejais sempre o primeiro

Você no “front” da luta

Tens a proteção do Céu

Sua guerra é pura labuta

Para você vou tirando o chapéu

Na sua luta existe glória

Pois edificas e constrói

Assim escreves uma linda história

Se torna gigante, um verdadeiro herói!

Nesse momento quero dizer

Com toda a minha sinceridade

Não és um mero trabalhador

Você é a própria majestade

Avante meu nobre guerreiro

Vá na raça e no amor

Os anjos também te agradecem

Oh, ilustre CATADOR!

 

Manuel Carlos Pitanga, brasileiro, casado, militar reformado e amante da leitura. Esse poema fiz em homenagem aos catadores de Resende, foi entregue pessoalmente na Cooperativa com o amigo Roberto Camargo que foi quem teve a ideia.

terça-feira, 4 de maio de 2021

Terceiro conto curto com melhor pontuação no I Concurso de Contos Curtos - Sebo do Edy - 2021

 

Glauber Costa é baiano, residindo atualmente no Amazonas. É professor. Tendo publicado contos e crônicas em revistas e antologias literárias. Publicou seu primeiro livro, "O homem com cabeça de urubu", em 2020, pela Filos Editora. Obra que é finalista do II Prêmio Book Brasil. O livro também se encontra disponível como publicação independente na Amazon.

 

 

O uirapuru na janela

 

Subi no ônibus apressado, no ritmo de todo dia. Estava atrasado para o trabalho. Mal consegui escolher onde sentar, de tão rápido que o motorista arrancou. Mas o sacolejar me levou, por sorte, a dois lugares vagos. Eu nunca gostava de sentar ao lado de ninguém. Gostava de ter a janela e saber que ninguém estava tão perto, para eu ocupar em paz o espaço da minha solidão.

Ajeitei-me na cadeira do corredor e, antes de passar para a da janela, já havia alguém lá. Como ele poderia ter sentado tão rápido? Ou será que eu não o tinha enxergado? Era um homem que parecia vestido para uma orquestra. No seu colo, havia um violão, que logo ele pegou e começou a tocar.

As pessoas no ônibus olhavam umas para as outras, para o alto, para fora, e o homem começava a cantarolar. E eu, que havia pensado estar com sorte, tinha uma companhia

barulhenta. Estressado, não conseguia pensar mais em nada, perdendo a concentração, toda ocupada por aquele cantor de ônibus. Mas, após aceitar o destino, comecei, aos poucos, a notar, que o ritmo com que ele cantava mantinha sintonia com qualquer coisa para onde eu olhasse. Seja as fachadas do comércio, o guarda de trânsito, os fios dos postes, até mesmo o teto do ônibus sintonizava com aquela voz suave. Achei que ia dormir. Mas comecei a chorar.

Como um susto, acordei e não estava chorando. Toquei o meu rosto e não havia sinais de lágrimas. Acordado, eu só ouvia agora a barulheira da lataria do ônibus, que seguia em alta velocidade. Então, tinha sido um sonho.

Mas, ao olhar para o lado, vi o homem ainda ali, com o violão no colo, com o rosto voltado para a janela.

Respirei fundo e olhei para frente por alguns minutos. Mas a curiosidade

foi maior. Olhei, disfarçadamente, o violão e a roupa, por um tempo, antes de perguntar:

- Vai se apresentar?

Ele olhou para mim tão suavemente, como se já esperasse a minha pergunta.

- A todos aqueles que quiserem ouvir.

E sorriu levemente. Um medo repentino e sem sentido me atingiu.

- E você, para onde está indo? - Perguntou o músico, com uma voz leve, que me fez novamente lembrar do sonho.

- Eu... eu... vou trabalhar. – gaguejei.

- Bom. Muito bom.

Algo em seu semblante parecia triste e vago. O homem voltou a olhar pela janela.

- Veja, olhe ali. – ele apontava para o acostamento e eu não entendia.

- Olhe as árvores. São árvores que estão sempre próximas a um rio.

Que satisfação! Comecei a duvidar da sanidade do sujeito. Mas, para tirar a impressão,

perguntei:

- Como você sabe?

Ele rio e me encarou. Foi quando pude ver seus olhos completamente negros e brilhantes.

- Como você não pode saber? – e gargalhou com suavidade.

Depois, inspirou fundo e começou a murmurar algo, que parecia uma canção. Meu coração acelerou. Mas como aquilo não fazia sentido, me concentrei, esperando a música.

Enquanto ele cantava, eu notei que não conhecia a avenida por onde o ônibus estava indo. Mais ainda, tive a impressão de ter passado o tempo da viagem até a firma. Ou não? Fiquei em dúvida de quanto tempo havia se passado. E o homem cantava, enquanto o medo súbito de estar perdido me alcançava.

Eu não entendia as palavras da canção. Parecia de uma língua estranha. Mas a sonoridade tinha uma sintonia grande com tudo, como no sonho. Talvez eu estivesse novamente sonhando. Recostei-me à poltrona e fechei os olhos esperando acordar. Mas o que vi foi um caminho de mata, que desembocava em um igarapé. Eu já havia saído do ônibus? Ou o ônibus iria entrar naquelas águas? Entrei em pânico, mas logo me vi flutuando e nas

margens do igarapé havia uma índia muito bonita. Eu cantava e o meu canto a deixava cada vez mais bela. Tão bela, que comecei a chorar. Ela se espantou com o meu choro, e logo me olhou com um sorriso hipnotizante, que me entonteceu, fazendo-me cair, cair, cair. Antes da queda terminar, eu acordei em espanto.

- Você a viu.

O homem já olhava para mim, como esperasse o momento exato que eu iria acordar.

- Você a viu!

E sorriu.

- Todo mundo vê. Eu não estou só. Você não está só.

Eu não entendia se ele falava ou já começava outra canção. Bruscamente levantei e não sabia o que fazer. Meu coração parecia um pássaro solto. Não sei se o ônibus sacolejou ou se fui eu que fiquei tonto. De qualquer forma, tive que me segurar. Um canto de pássaro soou bem alto assustando a todos, que se levantaram procurando. O motorista freou com

precisão e notei que um som de asas se debatendo veio da minha poltrona. O homem não estava mais lá. A janela estava aberta e um pássaro saía por ela, levando o olhar de todos em direção à mata, onde distingui um caminho que dava em águas e na silhueta de alguém sentado, que murmurava uma melodia triste, hipnotizando todo o ônibus, enquanto, lá fora, a cidade seguia em movimento veloz.

Sem saída, eu próprio comecei a murmurar a música do sonho, para tentar sintonizar tudo outra vez. A índia, ao longe, levantou-se sorrindo e eu, cantarolando, pulei a janela, sentindo atrás de mim o vento ríspido do ônibus seguir viagem, me deixando no ermo desconhecido em pleno ar, segurando-me na canção.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Segundo conto com melhor pontuação no I Concurso de Contos Curtos - Sebo do Edy - 2021.

 

Sou mineira de Belo Horizonte, nascida nos anos 60, amante de música e poesia. Faço curso de Criação Literária com Ronald Claver, escritor de Minas Gerais. Sou formada em Sociologia, estudei Letras na UFMG com meu filho que, atualmente, é professor de Literatura. Nasci com dificuldade de locomoção, o que não me impediu de transpor as fronteiras dos meus horizontes com as asas da música e da escrita.

 

O chá da verdade

 

De manhã, ele virou um inseto. Ficou escondido atrás da moldura de uma gravura de Dali. Quando viu Dalva, falou: “Oh, Dalva, não se assuste, sou eu, Jacinto. Virei essa coisa que está vendo. Acho que foi o chá que encontrei em cima da pia da cozinha. Quer tomá-lo para ver a reação”?

Dalva se assustou. Aquilo tudo era muito inusitado! Ver seu marido se transformar em um inseto a deixou nervosa.

-“Não, prefiro não me arriscar”, disse Dalva. “Se eu tomar o chá e me tornar um inseto, podemos sucumbir juntos. Alguém pode entrar aqui e nos pisotear. Ou a gata pode nos comer depois de brincar bastante conosco e nos deixar confusos. Vou permanecer como estou, pois desta forma posso cuidar de você”.

Dalva resolveu guardar o chá e começou a pensar em como cuidaria de Jacinto. Arrumou umas plantinhas para ele se alimentar, encheu um copinho com água e colocou Jacinto em um lugar seguro onde a gata não podia alcançar. Com medo de perdê-lo, começou a cuidar do marido mais do que cuidava anteriormente. A mulher dedicava bastante atenção ao marido, coisa que antes não acontecia.

O inseto Jacinto gostava do modo como estava sendo tratado. Quando era humano, Dalva nunca se incomodava com ele. Estava sempre preocupada com os afazeres da casa, com o cuidado com seu cabelo, sua pele, seu corpo. Ele sempre ficava em segundo plano. Chegou, então, à conclusão de que a metamorfose tinha ocorrido para o seu próprio bem. E ficou feliz por isso. Dalva, por sua vez, achava bom cuidar do marido-inseto. Além de exigir menos trabalho, ele requeria pouca atenção, se distraía com mínimas coisas, com uma brisa que soprava ou com um companheiro que entrava, de repente, pela janela. O mundo agora tinha se tornado grande e repleto de novidades para Jacinto. A vida ficou mais fácil para o casal. Ambos estavam felizes com o novo arranjo.

Dalva foi se acostumando com a ideia de ver Jacinto assim tão minúsculo, tão frágil e vulnerável a qualquer movimento impensado seu ou de outra pessoa. Às vezes, até se esquecia de que ele estava ali, no quarto. No entanto, uma coisa não saía de sua cabeça: será que era mesmo aquele chá que tinha provocado a metamorfose de Jacinto? Ela já havia tomado o chá várias vezes e nunca percebeu mudanças, a não ser um vigor maior, uma disposição para trabalhar e fazer coisas. Resolveu tomar o chá novamente para testar se viraria inseto também. Afinal, que mal faria se isso acontecesse?

Jacinto estava contente com a nova vida e ela poderia experimentar novas emoções.

Tomou o chá. Sentou-se no sofá e esperou pra ver se teria alguma reação. Passaram-se duas, três horas e...nada. O que sentiu foi o mesmo das outras vezes: uma grande disposição para sair e realizar coisas. E assim fez. Foi para o salão, se embelezou, comprou roupas novas, foi ao cinema, tomou um chopp com as amigas. Começou, então, a tomar o chá todos os dias. Sua vida se transformou, Dalva era uma nova mulher. Um dia, começou a namorar Herivelto, seu vizinho de porta. Não contou para ele que Jacinto havia virado um inseto, disse que tinha ido embora pra sua cidade natal. Também não contou nada para Jacinto, que percebia a mudança da mulher, mas continuava feliz em seu novo mundo.

Dalva e Herivelto resolveram se casar. Herivelto se mudou para a casa dela. Ao ver o que estava acontecendo, Jacinto ficou muito incomodado, mas já não conseguia falar o que sentia com Dalva. Apenas emitia alguns sons incompreensíveis. Resolveu, então, dar umas mordidas em Herivelto quando escurecia.

Herivelto, vendo aquele inseto insistente zumbindo em seu ouvido e lhe dando picadas à noite, ficou muito incomodado. Pegou um inseticida e borrifou em Jacinto, que teve morte instantânea. Dalva, ao ver a cena, se calou. Pegou uma caixa de fósforos e, enternecida, colocou nela o corpinho frágil de Jacinto e o enterrou no vaso de plantas da sala.

Dalva e Herivelto viveram felizes por muitos anos. Porém, com o tempo, Dalva começou a se cansar daquela vida. A rotina do casal a deixava entediada. Seu espírito era livre e ansiava por novidades. Um dia, Herivelto chegou em casa e encontrou uma xícara de chá em cima da pia. Com sede, bebeu todo o chá. Dalva, ao entrar na casa, não viu o marido. De repente, escutou uma voz: “Oh, Dalva, não se assuste, sou eu, Herivelto. Virei essa coisa que está vendo. Acho que foi o chá que encontrei em cima da pia”.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Conto com melhor pontuação no I Concurso de Contos Curtos - Sebo do Edy - 2021

 

Samuel Procópio Damasceno Couto, estudante de História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Idade de 22 anos, morador da cidade de Juiz de Fora/MG. 

 

AO SOM DE BEETHOVEN

 

Dona Ana acordava todos os dias às cinco horas da manhã. Era de rotina: o dom de acordar. Era uma senhora de cabelos curtinhos e brancos, pele negra, alta e magra de 94 anos.

Dona Ana morava sozinha, digo: mova com suas plantas (samambaias, lírios da paz, suculentas variadas, cactos espinhosos, roseiras brancas e vermelhas, um mini coqueiro e um pé de goiaba), três gatos (Juninho, Sansão e Lala), um pássaro sem nome e um peixe chamado Beethoven. Ela vivia com essa contradição que abrigada em sua casa (gato, planta, peixe e pássaro), Dona Ana se mantinha ocupada. Ora defendendo o peixe dos gatos ou as plantas da sede e do forte sol, e distraindo o passarinho com assobios para que não enlouquecesse na gaiola.

Dizem que a casa de Dona Ana estava um brinco! Ela mesma limpava tudo, com muito capricho. E ainda dizia que ser independente era o segredo da longevidade saudável. Cotidianamente limpava e sujava a casa. Sujava pratos e os lavava. Molhava o box do banheiro e o secava. Bagunçava a cama e arrumava impecavelmente: como se uma rainha fosse deitar. Sujava a roupa e no tanque com as mãos enverrugadas lavava.

Como se não bastasse ser possuidora de si, dos cuidados de sua casa: até o terreno abandonado da rua, onde todos jogavam lixo: por Dona Ana era cuidado. No fundo de seu coração, Dona Ana escondia o medo de se tornar um lote abandonado.

Para muitos era comum ver Dona Ana capinando e varrendo o lote abandonado.

Ela não deixava nem o mato crescer: três vezes por semana, capinava o lote abandonado. Um lote que nem era seu, mas ela não deixava ter cara de abandono. O lote era seu vizinho.

Dona Ana era um mistério. Um mistério talvez até para si mesma. Vivera a vida inteira na mesma casa. Dona Ana era como um peixe no aquário, um pássaro engaiolado, uma bela planta no vaso ou um gato atrás do muro.

O que os fofoqueiros da rua sempre comentavam era que Dona Ana, quando jovem, havia sido abandona no altar. E depois disso: fechou-se para o mundo. Outros falavam que o marido a batia muito e agora viúva: ficara desgostosa em investir em novos relacionamentos. Uns diziam que era uma velha doida, feia, chata e mal amada.

A realidade era que em sua intimidade, Dona Ana possuía lucidez de memórias em ter sido amada, respeitada e querida pelos seus de sua geração. Era a última ainda viva de sua geração de círculo de vivência. Já perdera pai, mãe, irmãos, primos, tias, avós, amores e amigos. Por isso Dona Ana ficava em sua casa: lá era o seu túmulo de vida que construiu com muita luta. Luta que não possuía mais os olhos que testemunharam de sua época, que hoje estão eternamente fechados e secos de tempo. Por isso Dona Ana era muito mal vista por olhos que não conheciam a doçura de Aninha no amargor sério que a palavra “Dona” pesava ao nome: Ana. Era dona apenas de si. Era simples: Ana. A letra “n” era a única ponte entre os dois “as” .

Numa madrugada antes das quatro horas, Dona Ana perdera o dom de acordar as cinco. Dizem que a encontraram deitada, com uma camisola rendada, que descobriram ter sido tecida por ela mesma. Na parede de sua casa havia um diploma de licenciatura em Línguas. Na cabeceira da cama havia um livro de poesias de sua autoria. E na cama estava a autora.

Neste dia, foi impossível entrar em sua casa e não se emocionar com os retratos de tanta gente que fizera parte da história de Dona Ana. O piano envernizado na parede, com partituras amarelas de “Clair de Lune” de Debussy e uma coleção de discos de Edith Piaf. Na casa possui pinturas por Dona Ana finalizadas e paisagens, faces inacabadas. Como não tivera filhos e nem marido: os herdeiros de Dona Ana foram ex-alunos que vieram do mundo inteiro se despedir da professora marcante.

O que chamara atenção da vizinhança a procura de Dona Ana, não fora cheiro forte, nem carteiro buscando proprietário. O que atraiu as pessoas para irem ver o que estava acontecendo foi altíssimo som de Beethoven debaixo da água: pedindo ar, não para si, mas para Dona Ana que estava afogada em sono eterno. Dizem que partira devido um infarto e seu último gesto, antes de mergulhar em sono eterno: foi soltar o pássaro e lhe dar o nome: Liberdade. Em seguida: apagou a luz, deitou na cama, por conseguinte: os três gatos já em luto velaram seu sono e seu último pedido foi dormir ao som de Beethoven.

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Resultado do I Concurso de Contos Curtos - Sebo do Edy

 

Resende – Rio de Janeiro – 07.04.2021

Resultado do I Concurso de Contos Curtos – Sebo do Edy - 2021.

 

Agradecemos a todos os participantes e parabenizamos os classificados.

Queremos agradecer a todos os participantes de todas as regiões do Brasil e exterior como Angola, Portugal, Itália e Moçambique.

Os diplomas serão entregues via e-mail, assim como o livro virtual em PDF.

 

Segue abaixo a lista dos 15 classificados:

 

Alberto Arecchi – Pavia /Itália. (A dona do Rio)

Anderson Almeida Nogueira – Cachoeira de Macacu/RJ. (Costume)

Danubio Brigido Alfredo – Maputo/Moçambique. (A casa abandonada)

Evandro Valentim de Melo – Brasília/DF. (Depois do café)

Flávia Gonçalves Medeiros – Quatis/RJ. (Os frutos e a intolerância)

Geraldo Trombin – Americana/SP. (Carta aberta a um coração fechado)

Glauber Costa Fernandes – Manacapuru/AM. (O uirapuru na janela)

Jonatan Magella da Silva – Nova Iguaçu/RJ. (Visita surpresa)

Júlia Magalhães Aguiar Cardoso – Rio de Janeiro/RJ. (Você)

Léo Ottesen – Rio Grande/RS. (O pássaro azul)

Maria de Fátima Arruda Lanna – Belo Horizonte/BH. (O chá da verdade)

Paulo Cezar Tórtora – Rio de Janeiro/RJ. (O punhal)

Roberto Schima – Salto/SP. (Semelhança)

Rosângela de Oliveira Martins – Vitória de Santo Antão/PE. (Christine)

Samuel Procópio Damasceno – Juiz de Fora/MG. (Ao som de Beethoven)

 

Edmilson Naves de Oliveira – Organizador responsável.


segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

I concurso de Contos Curtos - Sebo do Edy - 2021

 

O Sebo do Edy com o apoio do blog: www.edmilsonnaves.blogspot.com, lança o “ I Concurso de Contos Curtos – Sebo do Edy”.

O blog. www.edmilsonnaves.blogspot.com torna-se público o “I Concurso de Contos Curtos – Sebo do Edy – Resende/RJ - 2021.”

 

1) Objetivo

Apresentar textos na forma de narração – um texto escrito em estilo livre.

 

2) Concorrentes

Somente categoria adulta acima de 18 anos de idade, a inscrição é aberta para todo o território nacional e internacional de língua portuguesa.

Cada concorrente pode se inscrever com até 2 (dois) Contos Curtos.

As inscrições serão feitas por e-mail: edmilsonnaves.escritor@gmail.com, a seguir.

 

3) Prazos

As inscrições estarão abertas - 20/01/2021 a 30/03/2021.

Os resultados estarão disponíveis no Blog: edmilsonnaves.blogspot.com no dia 30/04/2021.

 

4) Categoria

Texto redigido em extensão. Doc;

Fonte Arial, tamanho 12, espaçamento entre linhas 1.5. Conter no máximo duas páginas A4

No arquivo da obra deve conter:

Título em negrito, nome do autor do trabalho ou pseudônimo.

O arquivo deve ser anexado ao e-mail: edmilsonnaves.escritor@gmail.com

O título do assunto do e-mail: I concurso de Contos Curtos – Sebo do Edy.

Texto do e-mail: Estou enviando meu (s) trabalho (s) para participar do concurso de Contos Curtos. Colocar nome completo, endereço para correspondência e e-mail.

E uma breve biografia do autor de até 5 linhas.

Os trabalhos que não estiverem de acordo, não serão aceitos.

5) Direitos

A simples inscrição do concorrente já autoriza a publicação do trabalho (caso) classificado em Livreto Antológico com o título do concurso em formato PDF, não podendo vir a ser comercializado.

Será de responsabilidades do (a) autor (a) o dever de garantir ser de sua própria autoria o texto – não plagio - podendo o participante responder judicialmente por infringir o artigo 9.610/98 de direitos autorais.

 

6) Premiação

Os primeiros 15 textos classificados receberão um diploma de Menção Honrosa.

Os Contos classificados serão editados em livreto Antológico com o título “I Concurso de Contos Curtos – Sebo do Edy”.

Cada concorrente receberá o livreto em formato PDF como lembrança da participação e não será comercializado.

 

6) Julgamento

O julgamento encerra-se no dia 30 de março de 2021.

As avaliações serão feitas por uma comissão de 5 membros sem vínculos com os participantes.

 

7) Considerações finais

Qualquer dúvida poderá ser consultada pelo e-mail: edmilsonnaves.escritor@gmail.com

A organização do concurso pede aos amigos das redes sociais que compartilhem o máximo o regulamento desta edição, a fim de obtermos o maior número de participantes no ‘ I Concurso de Contos Curtos – Sebo do Edy – Resende/RJ”.

 

15/01/2021