Glauber
Costa é baiano, residindo atualmente no Amazonas. É professor. Tendo publicado
contos e crônicas em revistas e antologias literárias. Publicou
seu primeiro livro, "O homem com cabeça de urubu", em 2020, pela
Filos Editora. Obra que é finalista do II Prêmio Book Brasil. O livro também se encontra disponível como publicação
independente na Amazon.
O uirapuru na janela
Subi no ônibus apressado, no ritmo de todo dia. Estava
atrasado para o trabalho. Mal consegui escolher onde sentar, de tão rápido que
o motorista arrancou. Mas o sacolejar me levou, por sorte, a dois lugares
vagos. Eu nunca gostava de sentar ao lado de ninguém. Gostava de ter a janela e
saber que ninguém estava tão perto, para eu ocupar em paz o espaço da minha
solidão.
Ajeitei-me na cadeira do corredor e, antes de passar
para a da janela, já havia alguém lá. Como ele poderia ter sentado tão rápido?
Ou será que eu não o tinha enxergado? Era um homem que parecia vestido para uma
orquestra. No seu colo, havia um violão, que logo ele pegou e começou a tocar.
As pessoas no ônibus olhavam umas para as outras, para
o alto, para fora, e o homem começava a cantarolar. E eu, que havia pensado
estar com sorte, tinha uma companhia
barulhenta. Estressado, não conseguia pensar mais em
nada, perdendo a concentração, toda ocupada por aquele cantor de ônibus. Mas,
após aceitar o destino, comecei, aos poucos, a notar, que o ritmo com que ele
cantava mantinha sintonia com qualquer coisa para onde eu olhasse. Seja as
fachadas do comércio, o guarda de trânsito, os fios dos postes, até mesmo o
teto do ônibus sintonizava com aquela voz suave. Achei que ia dormir. Mas
comecei a chorar.
Como um susto, acordei e não estava chorando. Toquei o
meu rosto e não havia sinais de lágrimas. Acordado, eu só ouvia agora a
barulheira da lataria do ônibus, que seguia em alta velocidade. Então, tinha
sido um sonho.
Mas, ao olhar para o lado, vi o homem ainda ali, com o
violão no colo, com o rosto voltado para a janela.
Respirei fundo e olhei para frente por alguns minutos.
Mas a curiosidade
foi maior. Olhei, disfarçadamente, o violão e a roupa,
por um tempo, antes de perguntar:
- Vai se apresentar?
Ele olhou para mim tão suavemente, como se já esperasse
a minha pergunta.
- A todos aqueles que quiserem ouvir.
E sorriu levemente. Um medo repentino e sem sentido me
atingiu.
- E você, para onde está indo? - Perguntou o músico,
com uma voz leve, que me fez novamente lembrar do sonho.
- Eu... eu... vou trabalhar. – gaguejei.
- Bom. Muito bom.
Algo em seu semblante parecia triste e vago. O homem
voltou a olhar pela janela.
- Veja, olhe ali. – ele apontava para o acostamento e
eu não entendia.
- Olhe as árvores. São árvores que estão sempre próximas
a um rio.
Que satisfação! Comecei a duvidar da sanidade do
sujeito. Mas, para tirar a impressão,
perguntei:
- Como você sabe?
Ele rio e me encarou. Foi quando pude ver seus olhos
completamente negros e brilhantes.
- Como você não pode saber? – e gargalhou com
suavidade.
Depois, inspirou fundo e começou a murmurar algo, que
parecia uma canção. Meu coração acelerou. Mas como aquilo não fazia sentido, me
concentrei, esperando a música.
Enquanto ele cantava, eu notei que não conhecia a
avenida por onde o ônibus estava indo. Mais ainda, tive a impressão de ter
passado o tempo da viagem até a firma. Ou não? Fiquei em dúvida de quanto tempo
havia se passado. E o homem cantava, enquanto o medo súbito de estar perdido me
alcançava.
Eu não entendia as palavras da canção. Parecia de uma
língua estranha. Mas a sonoridade tinha uma sintonia grande com tudo, como no sonho.
Talvez eu estivesse novamente sonhando. Recostei-me à poltrona e fechei os
olhos esperando acordar. Mas o que vi foi um caminho de mata, que desembocava
em um igarapé. Eu já havia saído do ônibus? Ou o ônibus iria entrar naquelas
águas? Entrei em pânico, mas logo me vi flutuando e nas
margens do igarapé havia uma índia muito bonita. Eu
cantava e o meu canto a deixava cada vez mais bela. Tão bela, que comecei a
chorar. Ela se espantou com o meu choro, e logo me olhou com um sorriso
hipnotizante, que me entonteceu, fazendo-me cair, cair, cair. Antes da queda
terminar, eu acordei em espanto.
- Você a viu.
O homem já olhava para mim, como esperasse o momento
exato que eu iria acordar.
- Você a viu!
E sorriu.
- Todo mundo vê. Eu não estou só. Você não está só.
Eu não entendia se ele falava ou já começava outra
canção. Bruscamente levantei e não sabia o que fazer. Meu coração parecia um pássaro
solto. Não sei se o ônibus sacolejou ou se fui eu que fiquei tonto. De qualquer
forma, tive que me segurar. Um canto de pássaro soou bem alto assustando a
todos, que se levantaram procurando. O motorista freou com
precisão e notei que um som de asas se debatendo veio
da minha poltrona. O homem não estava mais lá. A janela estava aberta e um
pássaro saía por ela, levando o olhar de todos em direção à mata, onde
distingui um caminho que dava em águas e na silhueta de alguém sentado, que
murmurava uma melodia triste, hipnotizando todo o ônibus, enquanto, lá fora, a
cidade seguia em movimento veloz.
Sem saída, eu próprio comecei a murmurar a música do
sonho, para tentar sintonizar tudo outra vez. A índia, ao longe, levantou-se
sorrindo e eu, cantarolando, pulei a janela, sentindo atrás de mim o vento
ríspido do ônibus seguir viagem, me deixando no ermo desconhecido em pleno ar,
segurando-me na canção.
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