terça-feira, 4 de maio de 2021

Terceiro conto curto com melhor pontuação no I Concurso de Contos Curtos - Sebo do Edy - 2021

 

Glauber Costa é baiano, residindo atualmente no Amazonas. É professor. Tendo publicado contos e crônicas em revistas e antologias literárias. Publicou seu primeiro livro, "O homem com cabeça de urubu", em 2020, pela Filos Editora. Obra que é finalista do II Prêmio Book Brasil. O livro também se encontra disponível como publicação independente na Amazon.

 

 

O uirapuru na janela

 

Subi no ônibus apressado, no ritmo de todo dia. Estava atrasado para o trabalho. Mal consegui escolher onde sentar, de tão rápido que o motorista arrancou. Mas o sacolejar me levou, por sorte, a dois lugares vagos. Eu nunca gostava de sentar ao lado de ninguém. Gostava de ter a janela e saber que ninguém estava tão perto, para eu ocupar em paz o espaço da minha solidão.

Ajeitei-me na cadeira do corredor e, antes de passar para a da janela, já havia alguém lá. Como ele poderia ter sentado tão rápido? Ou será que eu não o tinha enxergado? Era um homem que parecia vestido para uma orquestra. No seu colo, havia um violão, que logo ele pegou e começou a tocar.

As pessoas no ônibus olhavam umas para as outras, para o alto, para fora, e o homem começava a cantarolar. E eu, que havia pensado estar com sorte, tinha uma companhia

barulhenta. Estressado, não conseguia pensar mais em nada, perdendo a concentração, toda ocupada por aquele cantor de ônibus. Mas, após aceitar o destino, comecei, aos poucos, a notar, que o ritmo com que ele cantava mantinha sintonia com qualquer coisa para onde eu olhasse. Seja as fachadas do comércio, o guarda de trânsito, os fios dos postes, até mesmo o teto do ônibus sintonizava com aquela voz suave. Achei que ia dormir. Mas comecei a chorar.

Como um susto, acordei e não estava chorando. Toquei o meu rosto e não havia sinais de lágrimas. Acordado, eu só ouvia agora a barulheira da lataria do ônibus, que seguia em alta velocidade. Então, tinha sido um sonho.

Mas, ao olhar para o lado, vi o homem ainda ali, com o violão no colo, com o rosto voltado para a janela.

Respirei fundo e olhei para frente por alguns minutos. Mas a curiosidade

foi maior. Olhei, disfarçadamente, o violão e a roupa, por um tempo, antes de perguntar:

- Vai se apresentar?

Ele olhou para mim tão suavemente, como se já esperasse a minha pergunta.

- A todos aqueles que quiserem ouvir.

E sorriu levemente. Um medo repentino e sem sentido me atingiu.

- E você, para onde está indo? - Perguntou o músico, com uma voz leve, que me fez novamente lembrar do sonho.

- Eu... eu... vou trabalhar. – gaguejei.

- Bom. Muito bom.

Algo em seu semblante parecia triste e vago. O homem voltou a olhar pela janela.

- Veja, olhe ali. – ele apontava para o acostamento e eu não entendia.

- Olhe as árvores. São árvores que estão sempre próximas a um rio.

Que satisfação! Comecei a duvidar da sanidade do sujeito. Mas, para tirar a impressão,

perguntei:

- Como você sabe?

Ele rio e me encarou. Foi quando pude ver seus olhos completamente negros e brilhantes.

- Como você não pode saber? – e gargalhou com suavidade.

Depois, inspirou fundo e começou a murmurar algo, que parecia uma canção. Meu coração acelerou. Mas como aquilo não fazia sentido, me concentrei, esperando a música.

Enquanto ele cantava, eu notei que não conhecia a avenida por onde o ônibus estava indo. Mais ainda, tive a impressão de ter passado o tempo da viagem até a firma. Ou não? Fiquei em dúvida de quanto tempo havia se passado. E o homem cantava, enquanto o medo súbito de estar perdido me alcançava.

Eu não entendia as palavras da canção. Parecia de uma língua estranha. Mas a sonoridade tinha uma sintonia grande com tudo, como no sonho. Talvez eu estivesse novamente sonhando. Recostei-me à poltrona e fechei os olhos esperando acordar. Mas o que vi foi um caminho de mata, que desembocava em um igarapé. Eu já havia saído do ônibus? Ou o ônibus iria entrar naquelas águas? Entrei em pânico, mas logo me vi flutuando e nas

margens do igarapé havia uma índia muito bonita. Eu cantava e o meu canto a deixava cada vez mais bela. Tão bela, que comecei a chorar. Ela se espantou com o meu choro, e logo me olhou com um sorriso hipnotizante, que me entonteceu, fazendo-me cair, cair, cair. Antes da queda terminar, eu acordei em espanto.

- Você a viu.

O homem já olhava para mim, como esperasse o momento exato que eu iria acordar.

- Você a viu!

E sorriu.

- Todo mundo vê. Eu não estou só. Você não está só.

Eu não entendia se ele falava ou já começava outra canção. Bruscamente levantei e não sabia o que fazer. Meu coração parecia um pássaro solto. Não sei se o ônibus sacolejou ou se fui eu que fiquei tonto. De qualquer forma, tive que me segurar. Um canto de pássaro soou bem alto assustando a todos, que se levantaram procurando. O motorista freou com

precisão e notei que um som de asas se debatendo veio da minha poltrona. O homem não estava mais lá. A janela estava aberta e um pássaro saía por ela, levando o olhar de todos em direção à mata, onde distingui um caminho que dava em águas e na silhueta de alguém sentado, que murmurava uma melodia triste, hipnotizando todo o ônibus, enquanto, lá fora, a cidade seguia em movimento veloz.

Sem saída, eu próprio comecei a murmurar a música do sonho, para tentar sintonizar tudo outra vez. A índia, ao longe, levantou-se sorrindo e eu, cantarolando, pulei a janela, sentindo atrás de mim o vento ríspido do ônibus seguir viagem, me deixando no ermo desconhecido em pleno ar, segurando-me na canção.

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