terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Até o fim

 

Até o fim

Os passos largos tocavam forte a calçada, caminho mais que conhecido, aliás, por mais de trinta anos foi o trajeto de ida e volta para a repartição no Ministério da Fazenda, trabalho digno de um concursado hoje aposentado e só numa casa de vários aposentos que no passado corriam quatros filhos dois homens e duas meninas. Que agora só apareciam de vez em quando e Selma a secretária e também enfermeira ligava a todos dando notícias, um ou outro ligava direto no celular para conversar rápido os filhos mais velhos moravam em Londres, o casal caçula morava um em São Paulo e o outro em Curitiba.

Durante sua vida acumulou algumas manias e uma delas era não trocar sapatos e sim restaurá-los trocando a sola e assim aumentando a durabilidade e o conforto para os pés. A companheira de uma vida partira há doze anos, a doença do mal a levara como ele dizia e foram sete meses de sofrimento. Nos seus dezoito anos era linda e a família não o via com bons olhos, estudante e para se sustentar passava de trabalho em trabalho insignificantes, mas no fundo seu objetivo era passar num concurso público para o Ministério da Fazenda, mas para fazer cursinho a noite tinha que ter um trabalho qualquer e a família dela não queria esperar, comigo ela perdia tempo. Exatamente cinco meses após o resultado da classificação foi convocado para comparecer ao ministério, enfim iria assumir seu posto e onze meses entrava na igreja e realiza seu segundo sonho.

A enfermeira Selma, era mais que uma acompanhante e secretária, ela controlava os horários dos remédios, mas seu Alonso toda a tarde ia à praça do bairro jogar dominó com os amigos só uma dor o derrubava era a velha coluna, havia dias de crise que não saia da cama, então eram relaxantes e até injeção, a muito abolira o sal e o açúcar do seu paladar, as vezes dava uma escapada e almoçava no restaurante da esquina uma grande lasanha e vinho português. 

Décadas atrás havia sido amigo de JK a foto ficava na estante da sala como um troféu, frequentou festas no Palácio Guanabara com Elisa que sempre linda e simpática o deixava orgulhoso, por ela o marido seria político, mas não tinha o talento necessário, o seu coração era grande de bondade com todos e era feliz porque tinha a mulher ideal.

 Mas quando ela sentiu aquela dor forte no peito num domingo de junho, levada as pressas pelos filhos ao hospital à notícia foi a pior, coração de Elisa estava fraco e durante sete meses correram os melhores cardiologistas do Rio e São Paulo, ela recebera todo o amor dos filhos e dele que estava ao lado dela na hora da partida e naquele momento morria também a sua alegria.

A idade já pesava sobre os ombros e pernas sentia fraqueza ou tontura, nos últimos anos passara jogando dominó na praça do bairro, duas semanas atrás o pessoal foi convidado a jogar na sua garagem o carro tinha sido vendido a mais de três anos, o médico e os filhos o proibiram de dirigir, já não se animava andar até a praça. Uma semana antes passara dois dias na clínica, por causa das tonteiras que vem e vai agora o médico pediu vários exames e disse que tudo vai melhorar, não recebi nem um telefonema e Selma só apareceu no segundo dia, o pessoal sim estes vieram me visitar e o Maneco dormiu aqui e jogamos cartas até tarde só paramos quando a enfermeira chefe nos tomou o baralho, quando chegou a alta o neto do João da Márcia veio me buscar, sempre gostei daquele rapaz desde menino ele era sempre gentil com os mais velhos.

Um dos meus talentos sempre foi minha memória, eu nunca esquecia o aniversário de alguém da família e amigos próximos, no trabalho eu sabia cada processo pelo número e nome do requisitante, ultimamente sinto que esqueço as coisas às vezes tenho quatro filhos outras três e o nome deles, ando confundindo se não fossem as fotos, eu teria esquecido Elisa, tem dias que a chamo pedindo água e Selma me corrige é Selma é Selma.

Ontem me lembrei de que a última rodada de dominó não foi há quatro dias e sim dois meses, estou tendo brancos que duram não sei quanto tempo, dizem que minha filha mais velha passou uma semana aqui com meu neto, infelizmente não me lembro do Maneco, mas do João da Márcia sim todos os dias passa aqui, lemos o jornal juntos, mas não há notícias de JK agora... 

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