Até o fim
Os
passos largos tocavam forte a calçada, caminho mais que conhecido, aliás, por
mais de trinta anos foi o trajeto de ida e volta para a repartição no
Ministério da Fazenda, trabalho digno de um concursado hoje aposentado e só
numa casa de vários aposentos que no passado corriam quatros filhos dois homens
e duas meninas. Que agora só apareciam de vez em quando e Selma a secretária e
também enfermeira ligava a todos dando notícias, um ou outro ligava direto no
celular para conversar rápido os filhos mais velhos moravam em Londres, o casal
caçula morava um em São Paulo e o outro em Curitiba.
Durante
sua vida acumulou algumas manias e uma delas era não trocar sapatos e sim
restaurá-los trocando a sola e assim aumentando a durabilidade e o conforto
para os pés. A companheira de uma vida partira há doze anos, a doença do mal a
levara como ele dizia e foram sete meses de sofrimento. Nos seus dezoito anos
era linda e a família não o via com bons olhos, estudante e para se sustentar
passava de trabalho em trabalho insignificantes, mas no fundo seu objetivo era
passar num concurso público para o Ministério da Fazenda, mas para fazer
cursinho a noite tinha que ter um trabalho qualquer e a família dela não queria
esperar, comigo ela perdia tempo. Exatamente cinco meses após o resultado da
classificação foi convocado para comparecer ao ministério, enfim iria assumir
seu posto e onze meses entrava na igreja e realiza seu segundo sonho.
A
enfermeira Selma, era mais que uma acompanhante e secretária, ela controlava os
horários dos remédios, mas seu Alonso toda a tarde ia à praça do bairro jogar
dominó com os amigos só uma dor o derrubava era a velha coluna, havia dias de
crise que não saia da cama, então eram relaxantes e até injeção, a muito
abolira o sal e o açúcar do seu paladar, as vezes dava uma escapada e almoçava
no restaurante da esquina uma grande lasanha e vinho português.
Décadas
atrás havia sido amigo de JK a foto ficava na estante da sala como um troféu,
frequentou festas no Palácio Guanabara com Elisa que sempre linda e simpática o
deixava orgulhoso, por ela o marido seria político, mas não tinha o talento
necessário, o seu coração era grande de bondade com todos e era feliz porque
tinha a mulher ideal.
Mas quando ela sentiu aquela dor forte no peito
num domingo de junho, levada as pressas pelos filhos ao hospital à notícia foi
a pior, coração de Elisa estava fraco e durante sete meses correram os melhores
cardiologistas do Rio e São Paulo, ela recebera todo o amor dos filhos e dele
que estava ao lado dela na hora da partida e naquele momento morria também a
sua alegria.
A
idade já pesava sobre os ombros e pernas sentia fraqueza ou tontura, nos
últimos anos passara jogando dominó na praça do bairro, duas semanas atrás o
pessoal foi convidado a jogar na sua garagem o carro tinha sido vendido a mais
de três anos, o médico e os filhos o proibiram de dirigir, já não se animava
andar até a praça. Uma semana antes passara dois dias na clínica, por causa das
tonteiras que vem e vai agora o médico pediu vários exames e disse que tudo vai
melhorar, não recebi nem um telefonema e Selma só apareceu no segundo dia, o
pessoal sim estes vieram me visitar e o Maneco dormiu aqui e jogamos cartas até
tarde só paramos quando a enfermeira chefe nos tomou o baralho, quando chegou a
alta o neto do João da Márcia veio me buscar, sempre gostei daquele rapaz desde
menino ele era sempre gentil com os mais velhos.
Um dos
meus talentos sempre foi minha memória, eu nunca esquecia o aniversário de
alguém da família e amigos próximos, no trabalho eu sabia cada processo pelo
número e nome do requisitante, ultimamente sinto que esqueço as coisas às vezes
tenho quatro filhos outras três e o nome deles, ando confundindo se não fossem
as fotos, eu teria esquecido Elisa, tem dias que a chamo pedindo água e Selma
me corrige é Selma é Selma.
Ontem
me lembrei de que a última rodada de dominó não foi há quatro dias e sim dois
meses, estou tendo brancos que duram não sei quanto tempo, dizem que minha
filha mais velha passou uma semana aqui com meu neto, infelizmente não me lembro
do Maneco, mas do João da Márcia sim todos os dias passa aqui, lemos o jornal
juntos, mas não há notícias de JK agora...
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