segunda-feira, 28 de junho de 2021

Os frutos e a intolerância - Um dos Contos Curtos vencedor do I Concurso do Sebo do Edy - 2021

Flávia Gonçalves Medeiros – Engenheira Agrônoma formada pela Universidade Federal de Lavras- MG; Licenciada em Letras (Português/Literaturas) pela Universidade Federal Fluminense - RJ; servidora pública aposentada; escolheu a cidade de Quatis – RJ para viver, onde desfruta da companhia das plantas, dos bichos e dos livros.

 

Os Frutos e a Intolerância

 

Não me recordo quando minha semente perdeu a dormência e minha radícula tocou a terra, só sei que fui plantada aqui, no fundo deste terreno, muito longe de minhas antigas origens indianas. Desde pequena sabia que minha vocação era abraçar o céu e para ele dirigia meu ápice a cada alvorecer, a cada vesperal brilhante e a cada anil estrelado. Mesmo que houvesse nuvens, ventanias e aguaceiros, esplendoroso era o meu crescer, no cotidiano abrir e fechar de estômatos.

Finquei forte as raízes e fui me espichando para os lados com determinação. Minhas gemas túrgidas tinham pressa em lançar novos brotos, verdejando minha aura. Sob a minha copa ainda rala, o capim cor-de-rosa começava a esbanjar suas sementes para alimentar aqueles passarinhos que voam em cachos, fazendo algazarra desde cedo e enchendo o mato de alegria no miolo da cidade.

Em pouco tempo, meus galhos já sustentavam os pequenos ninhos de colibris. Depois, mais grossos, foi a vez das saíras, sanhaços, cambaxirras, rolinhas e canários. Ao final daquela temporada, ganhei altitude e altivez. Em meus vigorosos ramos sobrechegaram os primeiros botões florais que, nas chuvas da primavera, se abriram em cachinhos de delicadas pétalas brancas. Mirtos singelos que, tocados pelo vento, bailavam perfumados e roçavam a alma dos passantes alados. Atraídas pelas flores, vieram chegando as irapuás, as iruçus, as iraís, as mandaçaias e as jataís que, em revoadas alternadas, iam zumbindo e esparramando cristais de pólen pelo ar e, assim, acendiam meu verde naquela festa dourada.

Logo, despontaram os frutos dum intenso vermelho arroxeado, carregados de tanino, apetitoso elixir curativo que muitos desconhecem, menos os maracanãs e os sabiás a povoarem meu derredor, dando-me a missão por cumprida: jamelão, jambolão, baguaçu, manjelão, azeitona- roxa, guapê, baga de freira. Ocupada com a faina dos gulosos e distraída pelo frenesi daquele nicho enfrutecido, nem de longe suspeitei da fúria que crescia pra lá do muro que delimitava o terreno pelos fundos. É que, com os sopros temporais batendo em minha maturidade, ocorria o inevitável: muitos frutos acabavam parando do outro lado, forrando o chão dum singular tapete bordô. Justamente ali, naquele quintal onde havia alguém sempre a nutrir uma aversão pelas plantas!

Só fui atinar que havia algum descontentamento quando percebi que a vizinha trovejava a meu respeito. Mas, o que uma imóvel criatura como eu poderia fazer? Uma árvore só sabe ser. Fotossínteser-se! Carregada de sussurros farfalhados em dueto pela brisa na folhagem, cantilenas e aromas silvestres, em vão, tentei me desculpar.

Intolerante, a mulher não suportava ver seu espaço “sujo” pelas bagas e, como não tinha força nos braços para me derrubar com um machado, achou de comprar um poderoso veneno. Diluiu-o num balde d’água, abriu o portão lateral que dava para a rua, deu a volta por detrás do muro adentrando o terreno e, sem dó, derramou o líquido corrosivo no entorno de minhas raízes. O ataque foi feito às claras, sem nenhum constrangimento. Ela nunca se preocupou em esconder seu ato hediondo enquanto aspergia a poção com a ajuda de um caneco.

- Bem-te-vi! Bem-te-vi-te-vi-te-vi! Gritou a ave alardeando a malvadeza.

O caldo venenoso jogado na terra percolou, atingindo minhas raízes. Senti um ardor seguido de pontadas na coifa, que derreteu. Devagar a necrose alcançou meus veios mais profundos. A seiva endurecida e queimada não tinha mais serventia e uma asfixia se instalou. Minhas folhas foram caindo uma a uma, após murcharem. Meus galhos, antes fortes, foram adquirindo um aspecto ressequido.

Meu esqueleto ficou ali pousado, debulhando a dor num grito silencioso, a fazer contraponto aos pios agourentos das corujas. Virei um memorial enegrecido e fantasmagórico, assombrando a paisagem urbana neste mundo de expiação.

Mas, antes desse derradeiro devir, um aroma alcoólico e frutado ascendeu por entre meus sacaís, inundando-me de esperançosa paz: é que as frutinhas que caíram para o lado de cá, diferentes daquelas que foram varridas acolá, descansavam junto à terra, onde puseram-se a fermentar. Depois, eu já antevia, deitariam suas sementes e recomeçariam o pródigo ciclo da vida.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

2 comentários:

Unknown disse...

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Diógenes Carvalho Veras disse...

Gostei!

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