segunda-feira, 19 de abril de 2021

Conto com melhor pontuação no I Concurso de Contos Curtos - Sebo do Edy - 2021

 

Samuel Procópio Damasceno Couto, estudante de História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Idade de 22 anos, morador da cidade de Juiz de Fora/MG. 

 

AO SOM DE BEETHOVEN

 

Dona Ana acordava todos os dias às cinco horas da manhã. Era de rotina: o dom de acordar. Era uma senhora de cabelos curtinhos e brancos, pele negra, alta e magra de 94 anos.

Dona Ana morava sozinha, digo: mova com suas plantas (samambaias, lírios da paz, suculentas variadas, cactos espinhosos, roseiras brancas e vermelhas, um mini coqueiro e um pé de goiaba), três gatos (Juninho, Sansão e Lala), um pássaro sem nome e um peixe chamado Beethoven. Ela vivia com essa contradição que abrigada em sua casa (gato, planta, peixe e pássaro), Dona Ana se mantinha ocupada. Ora defendendo o peixe dos gatos ou as plantas da sede e do forte sol, e distraindo o passarinho com assobios para que não enlouquecesse na gaiola.

Dizem que a casa de Dona Ana estava um brinco! Ela mesma limpava tudo, com muito capricho. E ainda dizia que ser independente era o segredo da longevidade saudável. Cotidianamente limpava e sujava a casa. Sujava pratos e os lavava. Molhava o box do banheiro e o secava. Bagunçava a cama e arrumava impecavelmente: como se uma rainha fosse deitar. Sujava a roupa e no tanque com as mãos enverrugadas lavava.

Como se não bastasse ser possuidora de si, dos cuidados de sua casa: até o terreno abandonado da rua, onde todos jogavam lixo: por Dona Ana era cuidado. No fundo de seu coração, Dona Ana escondia o medo de se tornar um lote abandonado.

Para muitos era comum ver Dona Ana capinando e varrendo o lote abandonado.

Ela não deixava nem o mato crescer: três vezes por semana, capinava o lote abandonado. Um lote que nem era seu, mas ela não deixava ter cara de abandono. O lote era seu vizinho.

Dona Ana era um mistério. Um mistério talvez até para si mesma. Vivera a vida inteira na mesma casa. Dona Ana era como um peixe no aquário, um pássaro engaiolado, uma bela planta no vaso ou um gato atrás do muro.

O que os fofoqueiros da rua sempre comentavam era que Dona Ana, quando jovem, havia sido abandona no altar. E depois disso: fechou-se para o mundo. Outros falavam que o marido a batia muito e agora viúva: ficara desgostosa em investir em novos relacionamentos. Uns diziam que era uma velha doida, feia, chata e mal amada.

A realidade era que em sua intimidade, Dona Ana possuía lucidez de memórias em ter sido amada, respeitada e querida pelos seus de sua geração. Era a última ainda viva de sua geração de círculo de vivência. Já perdera pai, mãe, irmãos, primos, tias, avós, amores e amigos. Por isso Dona Ana ficava em sua casa: lá era o seu túmulo de vida que construiu com muita luta. Luta que não possuía mais os olhos que testemunharam de sua época, que hoje estão eternamente fechados e secos de tempo. Por isso Dona Ana era muito mal vista por olhos que não conheciam a doçura de Aninha no amargor sério que a palavra “Dona” pesava ao nome: Ana. Era dona apenas de si. Era simples: Ana. A letra “n” era a única ponte entre os dois “as” .

Numa madrugada antes das quatro horas, Dona Ana perdera o dom de acordar as cinco. Dizem que a encontraram deitada, com uma camisola rendada, que descobriram ter sido tecida por ela mesma. Na parede de sua casa havia um diploma de licenciatura em Línguas. Na cabeceira da cama havia um livro de poesias de sua autoria. E na cama estava a autora.

Neste dia, foi impossível entrar em sua casa e não se emocionar com os retratos de tanta gente que fizera parte da história de Dona Ana. O piano envernizado na parede, com partituras amarelas de “Clair de Lune” de Debussy e uma coleção de discos de Edith Piaf. Na casa possui pinturas por Dona Ana finalizadas e paisagens, faces inacabadas. Como não tivera filhos e nem marido: os herdeiros de Dona Ana foram ex-alunos que vieram do mundo inteiro se despedir da professora marcante.

O que chamara atenção da vizinhança a procura de Dona Ana, não fora cheiro forte, nem carteiro buscando proprietário. O que atraiu as pessoas para irem ver o que estava acontecendo foi altíssimo som de Beethoven debaixo da água: pedindo ar, não para si, mas para Dona Ana que estava afogada em sono eterno. Dizem que partira devido um infarto e seu último gesto, antes de mergulhar em sono eterno: foi soltar o pássaro e lhe dar o nome: Liberdade. Em seguida: apagou a luz, deitou na cama, por conseguinte: os três gatos já em luto velaram seu sono e seu último pedido foi dormir ao som de Beethoven.

4 comentários:

Unknown disse...

Excelente!

Mestre Tinga das Gerais disse...

Maravilha! Parabéns!

EdsonVotorantim disse...

Merece o primeiro colocado, um conto terno e gostoso de lê-lo.

Sonia Regina Rocha Rodrigues disse...

Que conto maravilhoso! Mereceu o prêmio.

Postar um comentário